Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

25 de dezembro de 2015

Conto de Natal (7)



Estando as prendas distribuídas, a mesa levantada e a cozinha arrumada, a avó ligou a televisão. O avô acomodou-se na sua poltrona, com a escalfeta eficientemente reparada pelo neto Mário a seus pés. As mulheres conversavam, porquanto Tininha andava ainda às voltas com os sais de frutos, massajando a barriga inchada. Os primos tornaram a desaparecer. O tio Carlos, embriagado, trauteava lengalengas obscenas aos ouvidos das sobrinhas, que se riam muito, na sua adolescência, e Narciso e Januário, sentados à mesa, à volta dos seus copos de vinho, embrenharam-se numa discussão política, berrando cada vez mais alto, impedindo os avós de ouvirem a sua televisão. Acabaram por se separar, amuados um com o outro.
Falou-se na missa do galo, mas estava frio. Os homens, de qualquer maneira, nunca consideravam ir e as mulheres sentiam-se cansadas. A avó alegou que se poderia assistir às cerimónias transmitidas de Roma. Foram, porém, todos deitar-se ainda antes da meia-noite, encaminhando-se para os seus quartos gelados. As primas tinham mais sorte, ficavam na sala aquecida, embora tivessem de abrir, por momentos, a janela, a fim de renovar aquele ar de comidas e transpirações.

A manhã de Natal reservava uma má surpresa a Clara. Os rapazes haviam-lhe dado nós nas roupas, alguns tão apertados, que ela só os conseguiu desfazer com a ajuda da mãe. As primas tinham deixado as suas malas no andar de cima e a indignação da moça só contribuiu para aumentar o divertimento dos primos. A tia Guiomar foi a única, de entre os adultos, que se dispôs a admoestá-los. Os homens não quiseram saber. E, se Tininha mostrou um pouco de compreensão pelo agastamento da sobrinha, Géninha limitou-se a um circunstancial «ai que malandros». Às escondidas, chegou a rir com o filho. As roupas de Sandra haviam sido poupadas, confirmando-lhe que uma moça só era tolerada quando apagada e submissa.
O avô dava-se ao luxo de saborear o seu café com leite e as suas torradas com manteiga na cama, pois a mulher levava-lhe o tabuleiro com o pequeno-almoço. Entretanto, já se havia acendido o lume no forno de lenha da adega, a fim de se assar o cabrito e o galo capão. Também se havia encomendado um leitão, já pronto, pois, em plena Bairrada, acedia-se sem dificuldade aos melhores especialistas.
Tendo já retirado a lenha e metido as carnes no forno quentinho, a avó preparou-se para ir à missa, solicitando a companhia das netas, já que as filhas e a nora ficariam a tomar conta dos assados. «Bem me custa», dizia ela, «mas, quanto maior é o sacrifício, mais Deus gosta e nos recompensa». A Sandra lembrou-se do avô, ainda no quentinho dos cobertores, e perguntou à avó porque não precisava ele de fazer aquele sacrifício. A avó olhou-a como se ela tivesse dito algum absurdo e respondeu: «eu rezo por mim e por ele». Trocando um olhar divertido com a prima, Sandra contrapôs: «e não podias rezar por nós também»? «Não sejas preguiçosa, anda», retorquiu a avó, mas era a vez de Clara dizer de sua justiça: «e os rapazes, também não precisam de fazer sacrifícios»? «Deus me livre, levá-los», replicou a avó, «são tão difíceis de aturar». «Não é justo», começou a neta, mas a avó interrompeu-a: «deixem-se de disparates e apressemo-nos, que se faz tarde».
A missa foi demorada, mas, em casa, tudo corria sobre rodas e os genros foram buscar o leitão, sendo agora a preocupação da avó que o dito cujo estivesse pronto a tempo. Devido ao grande número de encomendas, costumava haver atrasos.


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