Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

9 de setembro de 2014

Nada como ler os clássicos (13)

E todos, de entre a fenda das cortinas, como soldados na fresta de uma cidadela, espreitavam o largo, que o sol das quatro horas dourava, por sobre os telhados musgosos da cordoaria. Do lado da Rua das Pegas, as duas Lousadas, muito esgalgadas, muito sacudidas, ambas com manteletes curtos de seda preta e vidrilhos, ambas com guarda-sóis de xadrezinho desbotado, avançavam, estirando pelo largo empedrado duas sombras agudas.
As duas manas Lousadas! Secas, escuras e gárrulas como cigarras, desde longos anos, em Oliveira, eram elas as esquadrinhadoras de todas as vidas, as espalhadoras de todas as maledicências, as tecedeiras de todas as intrigas. E na desditosa cidade não existia nódoa, pecha, bule rachado, coração dorido, algibeira arrasada, janela entreaberta, poeira a um canto, vulto a uma esquina, chapéu estreado na missa, bolo encomendado nas Matildes, que os seus quatro olhinhos furantes de azeviche sujo não descortinassem - e que a sua solta língua, entre os dentes ralos, não comentasse com malícia estridente! Delas surdiam todas as cartas anónimas que infestavam o distrito; as pessoas devotas consideravam como penitências essas visitas, em que elas durante horas galravam, abanando os braços escanifrados; e sempre por onde elas passassem ficava latejando um sulco de desconfiança e receio. Mas quem ousaria rechaçar as duas manas Lousadas? Eram filhas do decrépito e venerando general Lousada; eram parentas do bispo; eram poderosas na poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depois duma castidade tão rígida, tão antiga e tão ressequida, e por elas tão espaventosamente alardeada - que o Marcolino do Independente as alcunhara de «Duas Mil Virgens».

In "A Ilustre Casa de Ramires", Eça de Queirós


2 comentários:

Bartolomeu disse...

Ninguém como Eça possuiu ou possui a arte de traçar com tanto realismo e agudez, a finura dos traços que descrevem os personagens que vivem nos seus romances. Tal como nos nossos dias, matéria-prima não lhe faltou, infere-se portanto que escasseiam hoje, escritores.
;)

Cristina Torrão disse...

Nem mais, Bartolomeu! Concordo inteiramente.
Este excerto é, na minha opiniäo, sublime :)