Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

5 de março de 2014

A Vista de Castle Rock


Alice Munro, a escritora nobelizada em 2013, confirma um pressuposto meu (e ver um pressuposto nosso confirmado por um vencedor do Nobel é muito gratificante, talvez por isso, ela me cativou tanto): qualquer vida é digna de ser contada, depende da maneira como se conta.

Romancear as tragédias da Humanidade, como o Holocausto, as guerras, as ditaduras, etc. é muito importante (contra o esquecimento) e dá livros espetaculares. Mas não menos importante é trazer para a luz os escombros do dia a dia: vitórias e derrotas, ilusões e desilusões, surpresas e rotinas, conversas e silêncios, esperanças e medos, etc. Uma vida, por vezes, cheia de crueldades de que não damos conta, porque cada um é dono de sua casa, entre marido e mulher não se mete a colher e coisa e tal... Os ódios que se criam, as almas que se torturam.

O que pode levar, por exemplo, uma jovem adolescente a confessar que tem vontade de matar o pai? Foi isso que fez uma colega de liceu da autora. Morando com familiares na cidade, a fim de melhor frequentar as aulas, aliciou a colega (a autora) para irem espiar o pai, na quinta da família, com a desculpa de que queria ver se ele tratava bem do irmão mais novo. O rapaz, de doze anos, era o único de quatro ou cinco irmãos que ainda se encontrava com os pais. E  dizia-se que o pai era dado a violências.

Chegadas ao seu destino e escondidas atrás de umas árvores, puseram-se a observar os acontecimentos. Não viram nada digno de nota, o pai chamou o filho para juntarem as vacas que andavam a pastar e as levarem ao curral, tarefa que fizeram, na maior das normalidades. Mas, de repente, a amiga disse: «se eu tivesse aqui uma arma, podia matá-lo, sem que ninguém me visse». E, pela sua expressão, a autora ficou a saber que ela falava a sério. E ficou a saber que a outra só a tinha levado até ali para lhe dizer aquilo. Porque tinha necessidade de dizer a alguém que desejava matar o pai.

São momentos destes que, na minha opinião, fazem um grande livro. Perguntamo-nos o que pode gerar tal ódio. Lembrando-se dos rumores de que o homem seria violento, a autora dá seguimento às nossas dúvidas e, quando já se haviam afastado da casa, pergunta à amiga: «Ele alguma vez te bateu?» A outra desata a rir: «Estás a brincar? Da última vez que lá estive, tentou desfazer-me o crânio com uma pá». Mais à frente, nova pergunta: «Odeia-lo?» E a resposta: «Claro que o odeio. Se me viessem dizer que ele se estava a afogar no rio, ia até lá e punha-me a festejar na margem». E tudo isto se passa num cenário idílico, tipo "Uma Casa na Pradaria", com famílias como a de Laura Ingalls.

O livro inicia-se com a história dos antepassados de Alice Munro, que, da Escócia, emigraram para o Canadá, na primeira metade do século XIX. Daí o título: Castle Rock era um local de onde observavam o oceano e sonhavam com o continente americano. A forma de vida, naquele tempo, e as expectativas dos emigrantes, assim como a descrição da viagem, são bem explanados pela autora. Mas o que mais me surpreendeu foram as motivações que levavam as pessoas a deixarem o seu lar. Na verdade, Alice Munro diz-nos que nenhum deles sabia bem porque o fazia. Não se tratava de miseráveis, tinham terras. A vida era dura, sem dúvida, mas continuou-o a ser, no Canadá. Não piorou, mas também não se pode dizer que tenha melhorado. Alice Munro mostra assim que, muitas vezes, fazemos coisas por acharmos que as devemos fazer, não nos perguntamos se vale a pena, ou se realmente o desejamos.

Da história dos antepassados, a autora passa para a sua própria vida - daí a capa da edição portuguesa, penso eu. E não resisto a transcrever um passo, depois de Alice Munro nos contar que o pai dela, um homem modesto, que passou a sua vida a fazer trabalhos com pouco valor social, como trabalhar numa fundição, ou num aviário, começou a escrever, com mais de sessenta anos de idade. Começou com memórias, das quais se desenvolveram contos, que chegaram a ser publicados num jornal local. Sobre isto, diz-nos a autora:

«Ele disse-me que a escrita o surpreendera. Surpreendeu-o ser capaz de tal e de que o fizesse tão feliz. Era como se o seu futuro estivesse na escrita».

Infelizmente, morreu pouco depois. E mais uma vez constatamos que uma alma de escritor pode ficar escondida durante toda uma vida, em alguém a quem não se dá valor, ao contrário da crença de que só quem publica livros e ganha prémios é um escritor digno desse nome.

O livro está organizado em contos, ou talvez seja melhor dizer em capítulos estanques, que se podem ler independentes uns dos outros. A linguagem é simples, nada tem de poético. Mas é muitas vezes crua. Alice Munro descreve-nos sentimentos como o da moça do exemplo, como nos podia estar a contar o que comeu ao jantar. Porque coisas dessas acontecem em famílias que denominamos de normais, têm origem em casa de "boa gente". E não são tão raras como pensamos...

Foi isso que me cativou. É esta a minha literatura!

Nota: li a versão alemã, com o título Wozu wollen Sie das Wissen (Fischer Verlag, reedição 2013)


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